MÓDULO 1 – CONCEITOS BÁSICOS
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO DO CURSO ..................................................................................................... 3
OBJETIVOS DO CURSO ............................................................................................................... 3
MÓDULO 1 – CONCEITOS BÁSICOS ................................................................................................ 4
OBJETIVOS DO MÓDULO .......................................................................................... 4
1.1. POR QUE ESTAMOS DISCUTINDO ÉTICA? ......................................................... 5
1.2. O MÉRITO DA AÇÃO: INTENÇÃO E JUÍZO DESINTERESSADO ........................... 6
1.3. ESCOLHA E DELIBERAÇÃO................................................................................ 12
1.4. VIRTUDES E CARÁTER ...................................................................................... 16
1.5. AUTONOMIA E RESPONSABILIDADE................................................................. 18
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ................................................................................ 19
APRESENTAÇÃO DO CURSO
O curso Ética e Serviço Público foi desenvolvido como parte do Projeto EuroBrasil 2000 e destina-se a homogeneizar os conhecimentos dos participantes sobre os fundamentos da Ética e sobre os desafios do serviço público. O pressuposto dessa iniciativa é que a excelência do exercício profissional é garantida não apenas pela competência técnica, mas também pelo estímulo ao discernimento moral.
O desenvolvimento de uma consciência ética é elemento fundamental para comprometer os
agentes públicos com o respeito à cidadania, ao estado de direito e à consolidação da democracia.
OBJETIVOS DO CURSO
Ao final do curso, espera-se que você seja capaz de:
· Reconhecer a dimensão ética de sua vida profissional; e
· Considerar a dimensão ética na resolução de problemas no serviço público.
MÓDULO 1 – CONCEITOS BÁSICOS
OBJETIVOS DO MÓDULO
Ao final desse módulo, você deverá ser capaz de:
· Contextualizar a discussão sobre Ética na atuação profissional no serviço público;
· Conceituar Ética, considerando seus aspectos cognitivos, exemplificando;
· Apontar a implicação da intenção e do juízo desinteressado na atribuição de mérito à ação;
· Distinguir escolha de deliberação na dimensão do agir ético;
· Definir virtude e caráter, relacionando-os;
· Descrever autonomia e responsabilidade no contexto ético.
Neste módulo você terá contato com conceitos básicos de ética e com o significado da
“dimensão moral ou ética” da existência. Os assuntos abordados aqui são:
· Por que estamos discutindo ética?
· O mérito da ação: intenção e Juízo desinteressado
· Escolha e deliberação
· Virtudes e caráter
· Autonomia e responsabilidade
1.1. POR QUE ESTAMOS DISCUTINDO ÉTICA?
DO MORALISMO À MORALIDADE
Durante as décadas de 1960 e 1970, o discurso político que enfatizava a moral e os bons costumes vinha associado a idéias conservadoras. Defendê-los era defender valores sedimentados na sociedade, tidos como essenciais à manutenção da ordem estabelecida.
Por outro lado, os que abraçavam idéias progressistas ou de mudança social tendiam a entender essa ênfase como um moralismo antiquado, sem muito propósito e, especialmente, como uma forma de controle ideológico da contestação.
Aquele foi um período de grande choque entre o passado e o futuro, a tradição e a mudança, que afetou não só as instituições políticas, mas especialmente a família e a religião. Os reflexos foram significativos nos costumes sexuais, no modo de se vestir, nas artes e em tantas outras dimensões da vida.
Essa polarização deixava pouco espaço para se pensar a ética como uma importante dimensão da existência humana.
Vivemos hoje um contexto bem diferente. De certa forma, as instituições que eram criticadas por seu conservadorismo e pela defesa de um moralismo rígido foram capazes de absorver parte das práticas e dos significados da crítica social daquele período, ainda que um tanto esvaziados de seu conteúdo.
Essa mudança é muito visível no que diz respeito aos costumes sexuais: o que era, então, considerado excepcional tornou-se corriqueiro e quase um padrão comportamental. É como se, de fato, aquele antigo moralismo conservador tivesse se transformado em peça de museu.
Algo semelhante ocorreu nos modos de se vestir, na música e, pelo menos em parte, na família e na religião, que tiveram de se adaptar aos novos tempos, flexibilizando – na prática, quando não no discurso – os padrões rígidos recomendados aos seus membros.
Embora certas práticas sociais inovadoras tenham ganhado terreno, e a própria idéia de “contestação” tenha conquistado ampla aceitação social, isso não representou um estado de
amoralidade ou descrédito do discurso ético. Assiste-se hoje a uma forte preocupação com a
dimensão ética da vida social em todos os campos, especialmente na interação entre
economia e política, e no exercício das funções públicas.
Curiosamente, percebe-se uma mudança na antiga polarização ideológica centrada no
moralismo, sobre a qual falamos no início deste módulo: enquanto parte do discurso e da
prática conservadora continua, como no passado, apegada firmemente à rigidez moral,
associando, como nunca, a ética com a tradição e a ordem estabelecida, outra parte tende, não
só a deixar de lado esse moralismo tradicional, mas também a assumir uma atitude cada vez
mais flexível e pragmática em relação a princípios e valores éticos.
Por sua vez, muitos dos que se sentem comprometidos com o discurso e a prática
contestatória têm se dado conta da importância dos princípios e valores éticos. Hoje tanto
conservadores quanto progressistas reconhecem que a perspectiva da mudança social e a
consciência ética não são opções conflitantes.
Pode-se dizer que as sociedades contemporâneas, independente das inclinações políticoideológicas
da maioria de seus cidadãos, têm demonstrado uma inédita abertura para refletir
seriamente sobre os pressupostos éticos de sua existência, problematizando, dessa maneira,
seus costumes, regras formais e práticas informais.
Essa abertura acaba repercutindo nas instituições públicas, tanto nas de representação quanto
nas de administração. Como resultado, vemos os representantes eleitos e os profissionais da
administração pública sensibilizados com as preocupações de ordem moral das comunidades a
que servem, e preocupados em atender as demandas de ordem ética da sociedade.
É muito apropriado, portanto, a quem pretende aprimorar sua atuação profissional nos diversos
setores do serviço público, identificar e compreender o que significa a dimensão moral ou ética
da existência.
1.2. O MÉRITO DA AÇÃO: INTENÇÃO E JUÍZO DESINTERESSADO
O QUE QUEREMOS DIZER QUANDO AFIRMAMOS QUE A EXISTÊNCIA HUMANA TEM UMA
DIMENSÃO ÉTICA OU MORAL?
Certas correntes da filosofia costumam distinguir os campos da Ética e da Moral. Filósofos
alemães, por exemplo, freqüentemente distinguem as práticas, regras ou costumes de uma
comunidade específica (o campo da moral), dos princípios formais, e supostamente de caráter
universal, implicados na consciência do dever (o campo da ética propriamente dito).
Outras correntes preferem não fazer essa distinção. Etimologicamente, os dois termos têm
significados semelhantes: “ética” vem do grego ethos, e “moral” do latim mos, ambos
significando “uso” ou “costume”. Embora esclarecedora para certos propósitos, essa distinção
não será relevante para o nosso curso.
AÇÕES DO HOMEM E FENÔMENOS DA NATUREZA
Assim como os fenômenos da natureza (movimentos das rochas, dos mares e dos planetas,
etc.), as ações humanas também modificam o mundo. Contudo, esses dois tipos de eventos -
naturais e humanos - são apreciados por nós de formas completamente distintas.
Quando se trata de uma ação humana, por exemplo um roubo praticado por alguém, fazemos
não apenas uma avaliação moral do aspecto exterior, visível, do evento (a apropriação
indevida de algo que pertence a outra pessoa), mas principalmente uma avaliação moral do
sentido dessa ação para o agente que a pratica, em um esforço para compreender as suas
intenções.
Quando, porém, se trata de um fenômeno da natureza, como uma acomodação de placas da
crosta terrestre que causa terremotos na superfície do planeta, essa avaliação moral não
ocorre, exatamente porque não há como atribuir uma intenção àquela força.
A ética envolve um processo avaliativo especial sobre o modo como os seres humanos
intervêm no mundo ao seu redor, principalmente quando se relacionam com os seus
semelhantes.
Vamos a um exemplo: não é incomum vermos na imprensa denúncias contra agentes públicos
que se apropriam indevidamente de recursos do Estado, prejudicando, assim, investimentos
nas políticas públicas e atendimento das demandas sociais.
Muitas catástrofes naturais, em sua manifestação exterior e visível, provocam destruição e
morte. São freqüentes as notícias de terremotos, tempestades e furacões que devastam
cidades inteiras, causando um número grande de vítimas. Porém, a repulsa e a indignação
com o desvio de verbas públicas é muito mais significativo.
QUAL A DIFERENÇA?
Ocorre que, no caso do desvio de verbas, levamos em conta não só o seu aspecto exterior –
as obras públicas e assistências que deixaram de ser feitas – mas, especialmente, a
intencionalidade dos agentes.
Quando atribuímos a essa intencionalidade uma de qualidade negativa – dizemos “má”,
“perversa”, “torpe” etc. - tal qualidade afeta a percepção que temos do agente. Não fazemos
essa mesma avaliação quando se trata de terremotos e furacões, e isso diminui o choque que
eles nos provocam, mesmo que causem muito mais morte e destruição.
O inverso é igualmente válido: ações humanas às quais atribuímos uma intenção positiva, e
que resultam em algo considerado como bom, correto e construtivo, causam em nós um
impacto muito mais sublime do que eventos naturais benéficos à humanidade.
VAMOS A MAIS UM EXEMPLO.
No final de 2006, uma notícia divulgada nos noticiários chamou a atenção da opinião pública:
um gari de uma cidade do interior brasileiro encontrou no lixo, ao varrer uma rua, perto de 12
mil reais em dinheiro e os devolveu ao dono.
O gesto do humilde servidor público mereceu a nossa admiração, recebeu uma avaliação
moral positiva e foi mostrado como “uma vitória dos valores éticos”. Não fazemos esse tipo de
avaliação com relação à chuva que cai na época do plantio, favorecendo o ciclo produtivo da
agricultura e a produção de alimentos.
Concluímos, então, que, independentemente do resultado de cada uma delas, as ações
humanas são avaliadas de maneira bem diferente das intervenções dos fenômenos naturais.
Apenas as ações humanas recebem uma avaliação moral. E esse processo avaliativo diz
respeito ao mérito ou demérito do agir humano. São as atribuições de mérito ou demérito que
concedem à ação um valor: o valor moral.
Explicando melhor: o mérito de uma ação humana diz respeito ao valor moral positivo dessa
ação; o demérito, por sua vez, diz respeito às ações humanas que possuem um valor moral
negativo.
Nas crenças religiosas de civilizações remotas, costumava-se atribuir significados éticos a
catástrofes naturais.
Fazia-se essa avaliação moral, quanto ao seu mérito ou demérito, exatamente porque se
supunha que tais eventos eram provocados por “deuses” ou “espíritos” que possuíam
características humanas, o que levava a imaginar que a “fúria” das catástrofes advinha da fúria
desses entes antropomorfizados (com forma humana).
Nossa civilização tem hoje outra compreensão da relação entre o homem e o transcendente.
Vamos ficar então apenas com a avaliação moral das ações humanas. Veremos que há uma
outra classificação que tem a ver com a intenção desse agir humano.
A INTENÇÃO DA AÇÃO HUMANA
Um evento humano acidental carrega um impacto moral muito diferente de um evento
planejado. Essa distinção encontra-se na prática do direito e é considerada na diferença entre
crime doloso (com intenção) e crime culposo (sem intenção).
A comparação a seguir entre dois trágicos eventos que chocaram a opinião pública, nos ajuda
entender que a avaliação moral de um evento decorre menos dos efeitos da ação humana e
mais da intencionalidade de quem a pratica.
Em 31.10.2002, em São Paulo, uma jovem de 19 anos, seu namorado e o irmão deste
planejaram e assassinaram os pais da jovem com golpes de barras de ferro.
Em 17.07.2007, um acidente aéreo em São Paulo, no aeroporto de Congonhas, provocou a
morte de 199 pessoas. Foi o pior acidente aéreo da história da América Latina.
Embora os dois eventos tenham mobilizado e sensibilizado a opinião pública, a avaliação moral
de cada um desses tristes acontecimentos é completamente diferente. Enquanto a morte do
casal foi cruelmente planejada e executada, o acidente aéreo, quer tenha sido fruto de
negligência, imperícia ou imprudência, certamente ocorreu sem qualquer intenção.
O frio assassinato suscitou repulsa e revolta. O acidente aéreo gerou comoção e muita
solidariedade aos parentes das vítimas. O Presidente da República decretou 3 dias de luto
oficial no País, e vários países manifestaram seu pesar pelo ocorrido.
Pode-se atribuir valor – positivo ou negativo – ao próprio gesto acidental, sem intenção, se for
percebido como subproduto de uma atitude prévia, “negligente” ou “prudente”.
Ainda assim, porém, essa avaliação tende a ter menor impacto do que uma atitude
perfeitamente consciente e premeditada que tenha relação direta com o evento “bom” ou “ruim”
produzido.
VALOR MORAL E PONTO DE VISTA DESINTERESSADO
Além da intenção, há um segundo aspecto que caracteriza bem a moralidade como um
processo avaliativo especial. Trata-se do ponto de vista desinteressado.
Mas o que é o ponto de vista desinteressado?
Quando avaliamos o mérito da ação, nos esforçamos para ser imparciais não levando em
conta se ela nos prejudica ou nos beneficia. Procuramos desconsiderar se aquele gesto
promove ou não nosso próprio interesse.
Claro que os seres humanos são fortemente motivados por impulsos egoístas e interessados; e
que esses impulsos não raro interferem em nossa capacidade de avaliar o gesto alheio.
Mesmo assim é característico da avaliação moral analisar o mérito ou demérito de uma ação
independente do fato de beneficiar ou prejudicar essa ou aquela pessoa.
Veja como fenômenos corriqueiros indicam a presença de uma sensibilidade moral, ainda que,
de uma forma sutil.
Por exemplo: é essa sensibilidade que nos faz pensar que um adversário em uma competição
é moralmente “decente”, ainda que ele venha a nos vencer (e portanto, nos prejudicar) nessa
competição.
É isso, também, que faz o torcedor de um time chegar à conclusão que os jogadores do time
adversário são “honestos”, mesmo que venham a superar o time de seu coração.
Concluindo: pode-se admitir que a sensibilidade moral é geralmente menos intensa do que as
reações que vêm do interesse próprio ou de emoções como a ira, a inveja ou o ciúme. Mas,
insistimos, a sensibilidade moral é suficientemente sólida para orientar as exigências de
imparcialidade para o mérito alheio, fundamentais para sustentar o que chamamos aqui de
dimensão moral da existência.
Muitos aspectos da vida social – talvez mesmo o próprio viver comunitário – seriam
simplesmente inimagináveis, não fosse essa capacidade de fazer juízos morais,
desinteressados, a respeito do que fazem outras pessoas ou comunidades.
O SENSO E JUÍZO MORAIS
Um filósofo escocês do século dezoito – David Hume – dedicou-se longamente a estudar as
peculiaridades do ponto de vista moral e a criticar os que supunham que este ponto de vista
poderia ser reduzido a uma perspectiva egoísta ou parcial.
Em seu livro mais famoso a respeito – Uma Investigação sobre os Princípios da Moral
(Campinas: ed. UNICAMP, 1996) – Hume destaca precisamente o tipo de juízo que está em
jogo quando fazemos avaliações morais.
“Freqüentemente dedicamos elogios a ações virtuosas realizadas em épocas muito distantes e
em países remotos, casos em que a máxima sutileza da imaginação não conseguiria revelar
qualquer vestígio de interesse próprio ou encontrar qualquer conexão entre nossa felicidade e
segurança presentes e eventos tão amplamente separados de nós.
Um feito generoso, nobre e corajoso realizado por um adversário granjeia nossa admiração,
ainda que possa ser reconhecido, por suas conseqüências, como prejudicial a nossos
interesses particulares.
Nos casos em que vantagem privada se combina com a afeição geral pela virtude, nós
prontamente percebemos e confessamos a mistura desses sentimentos distintos, cuja atuação
e influência sobre o espírito são muito diferentes. [...]
Construa-se o modelo de um caráter digno de todos os elogios, composto de todas as mais
estimáveis virtudes morais; citem-se exemplos nos quais estas se manifestam do modo mais
esplêndido e extraordinário – conquistar-se-á prontamente, neste caso, a estima e a aprovação
de todos os ouvintes, que não irão indagar sequer uma vez em que época ou país viveu essa
pessoa, apesar de ser essa informação, dentre todas, a mais importante do ponto de vista do
interesse próprio ou preocupação com a própria felicidade individual.[...]
'QUE TEM ISSO A VER COMIGO?'
Há poucas ocasiões em que essa pergunta não é pertinente; e se ela tivesse a influência
universal e infalível que lhe é atribuída, tornaria ridículos todos os discursos e quase todas as
conversas que contivessem algum louvor ou repreensão de pessoas ou costumes.” (pp.80- 1)
O filósofo alerta também que a avaliação moral não é apenas uma questão de sentimento.
“Dedicamos sempre uma consideração mais apaixonada a um estadista ou patriota que serve
nosso próprio país em nossa própria época do que a um outro cuja influência benéfica operou
em eras remotas ou nações distantes, nas quais o bem resultante de sua generosa
benevolência, estando menos relacionado conosco, parece-nos mais obscuro e nos afeta com
uma simpatia menos vivida. Podemos reconhecer que o mérito é igualmente grande em ambos
os casos, embora nossos sentimentos não se elevem à mesma altura.” (p..95)
A avaliação moral mobiliza também a razão, que procura corrigir um eventual desequilíbrio dos
sentimentos.
“Aqui, o juízo corrige a parcialidade de nossas emoções e percepções internas, do mesmo
modo que protege do erro diante de muitas variações das imagens apresentadas aos nossos
sentidos externos.” (p.95)
RAZÃO, EMOÇÃO E A AVALIAÇÃO MORAL
A que se deve essa capacidade de atribuir mérito e demérito às nossas ações, que como
vimos, envolve a intenção e o juízo desinteressado?
Desde a Antiguidade Grega e Romana, os filósofos se dividem sobre a questão.
Alguns atribuíam a origem de nossas avaliações morais a uma faculdade racional pura,
completamente livre de nossos desejos e emoções, capaz de determinar máximas universais
para nossos atos, qualificando-os então como dignos de mérito.
Outros, como o próprio Hume, citado anteriormente, pensavam que a razão é apenas um fator
subsidiário do juízo moral, que de resto opera graças a uma capacidade inata que possuímos
de compartilhar as misérias e as alegrias alheias.
Mais recentemente, outros posicionamentos teóricos despontaram. Por exemplo...
Concepções que remetem a moralidade à condição intrinsecamente social do ser humano e
concepções que têm em conta o caráter prático da linguagem humana.
A linguagem, nestas concepções, não apenas tem a função de representar o mundo, mas é
uma forma de agir. Uma das visões mais influentes, nesse campo, é a Teoria da Ação
Comunicativa do Filósofo alemão J. Habermas.
Apesar das divergências entre as correntes filosóficas, todas reconhecem a ética como uma
dimensão especial da vida – isso, tanto para lhe dar significado existencial mais profundo,
quanto para preservar e aprimorar (por meio da política) a própria vida comunitária.
1.3. ESCOLHA E DELIBERAÇÃO
Até aqui falamos pouco dos aspectos cognitivos da ética. Contudo, o agir moral é um tipo de
atividade inteligente das mais complexas.
ESCOLHA
A escolha é o momento final – e o mais visível – de uma reflexão que a precede.
O QUE SIGNIFICA A ESCOLHA?
A rigor, a escolha só existe quando estamos diante de alternativas, pois com apenas um
caminho a seguir não haveria escolha.
O processo avaliativo da ética depende de que se façam certas coisas que não são tomadas
como inevitáveis. Não haveria mérito em uma ação obrigatória, ou seja, que não pode ser
evitada.
É a partir das comparações com o que as pessoas poderiam ter feito, mas acabaram não
fazendo, que se chega a um juízo sobre o mérito ou demérito.
DELIBERAÇÃO
A moralidade supõe uma estrutura do mundo em que pelo menos uma parte dos eventos não
está submetida a uma “necessidade férrea”. Esta expressão refere-se às condições
necessárias que levam um evento a acontecer, obrigatoriamente, de determinada forma. Nesse
caso, essas condições não podem ser modificadas e delas ninguém pode escapar.
Conforme dissemos anteriormente, se todos os eventos fossem inevitáveis, ou seja,
submetidos a uma “necessidade férrea”, a escolha não seria apenas impensável, mas inútil.
Tratando-se, então, de uma situação em que nos vemos diante de mais de um caminho a
seguir, a escolha exigirá uma introspecção prévia, uma reflexão, que vai não só definir a
intenção do agir, mas desencadear um processo de amadurecimento quanto à decisão a ser
tomada. Essa etapa é chamada de deliberação.
A ação que provocará uma intervenção no mundo, a modificação de um estado de coisas,
requer esse tempo de gestação interna que é a deliberação. É como se a escolha tivesse que
crescer e amadurecer dentro de nós antes de ser exposta ao mundo visível.
O PROBLEMA DO ACASO
De acordo com o que discutimos antes, muitos eventos estão submetidos à chamada
“necessidade férrea”. Mas, há também acontecimentos completamente imprevisíveis e não
submetidos a qualquer necessidade reconhecida. São eventos incertos e indeterminados, que
estão completamente à mercê do acaso.
Diante dessas situações cujo resultado depende da “sorte” ou do “azar”, não é possível a
deliberação e a escolha.
ENTRE A NECESSIDADE E O ACASO
Embora os eventos submetidos à “necessidade férrea” ou ao acaso não dependam de nós, há
outros em que a deliberação e a escolha poderão e deverão ser exercidas a partir de nossa
atividade inteligente e premeditada. A ação humana em geral, e o agir moral em particular,
situam-se nesse meio termo entre a necessidade férrea e o acaso total.
Para que a ética seja de fato uma dimensão significativa de nossas vidas, precisamos estar
convictos de que a deliberação e a escolha fazem uma grande diferença no resultado final, isto
é, que o mundo seria muito distinto do que é, se o deixássemos seguir seu curso sem a nossa
interferência consciente.
MEIOS E FINS
Vejamos agora como o agir moral representa um campo privilegiado da deliberação e da
escolha.
Toda a ação visa a objetivos, “metas” ou “fins”, que se colocam para nós no contexto de um
plano de ação.
Porém, o plano não pode se limitar à meta ou fim. Há etapas intermediárias no caminho e cada
etapa correspondendo a um “meio” ou “recurso” para se atingir o “fim” almejado. O plano exige
uma reflexão sobre esses níveis distintos de um mesmo processo – os “fins” da ação e os
“meios” para alcançá-los.
Em resumo, temos os seguintes problemas sobre os quais deliberar e escolher:
· a determinação das metas (ou fins);
· o discernimento de todos os meios que tornariam aquelas metas realizáveis; e
· a própria seleção dos meios que consideramos adequados, entre os vários que
podemos mobilizar.
FALANDO MAIS SOBRE O VÍNCULO ENTRE MEIOS E FINS...
Um fim tem que ser algo que desejamos, porém sempre pode haver mais de uma opção.
Vejamos:
1) Posso desejar algo, mas chegar à conclusão de que os meios para alcançá-lo estão
fora de meu alcance;
2) Posso desejar algo perfeitamente alcançável, mas que eu mesmo não o considero
apropriado do ponto de vista moral;
3) Posso desejar algo moralmente apropriado, mas pensar que certos meios disponíveis
para alcançá-los são inapropriados.
OBSERVE...
Em (1), o fim planejado não pode estar descolado de uma avaliação da capacidade de realizálo:
se acho que não há meios disponíveis que me levem àquele fim, devo reconsiderar a
própria meta.
Em (2) e (3), a questão do mérito ou demérito da ação já qualifica de um modo especial as
opções. Eu tenho certas opções ao meu alcance, sei que elas poderiam acontecer se assim o
desejasse, mas a percepção de um demérito nela me leva a cogitar uma espécie de veto
interno.
O veto interno é independente de qualquer coação externa, de ordem física ou legal, que possa
eventualmente impedir ou dificultar o exercício da opção.
POR QUE FAZEMOS O VETO?
As alternativas que vetamos estão ao nosso dispor, apenas recusamos procurá-las,
simplesmente porque consideramos seus fins, ou seus meios, indignos daquilo que
valorizamos moralmente.
Por que, apesar de serem momentos de um mesmo processo, insistimos na distinção entre a
deliberação e a escolha?
A deliberação é um raciocínio ou meditação sobre alternativas. Como essa meditação não é da
ordem de uma demonstração, não temos como saber se sua conclusão é verdadeira.
Sendo de um resultado incerto, a meditação poderia prosseguir indefinidamente, não fosse por
uma questão: É PRECISO AGIR.
O término da deliberação não está inscrito no próprio raciocínio – como é o caso de uma
demonstração matemática – mas advém do fato de que a ação é prática. Ela visa uma
intervenção no mundo.
A intervenção possui um tempo oportuno, antes ou depois do qual ela se torna inútil. Por causa
das pressões de caráter prático, surgirá um momento em que a reflexão terá que ser
encerrada, mesmo que permaneçam dúvidas a respeito da opção a ser feita.
“SE NÃO ESCOLHERMOS, SEREMOS ESCOLHIDOS”
Entre a deliberação e a ação subseqüente no mundo há um fosso que somos obrigados a
transpor. Não fosse por isso, poderíamos continuar oscilando indefinidamente a respeito das
alternativas. Entretanto, isso é impossível na prática, pois... CHEGARÁ O MOMENTO DA ESCOLHA.
1.4. VIRTUDES E CARÁTER
O problema da escolha, como algo distinto da deliberação, já sugere que a ética não se
resume a uma questão de inteligência, de capacidade cognitiva. É preciso, além da natureza
inteligente da ação moral, disposição para agir conforme a direção apontada pelo intelecto.
Esse ponto remete às virtudes.
Muitos obstáculos se colocam adiante do plano meditado na consciência. Devemos, é claro,
considerar o mundo ao redor: o mundo físico e também o mundo constituído por outras
pessoas, que podem resistir ou colaborar.
Mas não é só isso. Nós somos seres complexos, ou seja, não podemos ser resumidos apenas
ao nosso intelecto, ou capacidade cognitiva. Outras faculdades desse complexo entram em
jogo quando decidimos modificar o mundo por intermédio de nossas ações: o corpo, as
emoções, os desejos...
O QUE É PRECISO PARA SE CHEGAR À VIRTUDE?
É preciso que as intenções do intelecto estejam bem articuladas a essas outras faculdades
(emoções, desejos, etc.). Em seu conjunto, essas partes engrenadas dispõem as pessoas a
agir de uma determinada maneira, e não de outra. Essas disposições dão consistência prática,
e não apenas cognitiva, aos nossos planos de vida.
Se são virtudes, falamos de disposições “corretas”, “adequadas” ou “excelentes”. Se são vícios,
falamos de disposições “erradas”, “inadequadas” ou “ruins”. Virtude e mérito podem ser
considerados em diferentes graus.
VEJAMOS:
Posso desejar algo e, no entanto, carecer da força de vontade para buscar o objeto desejado.
Ou posso pretender reagir de certa maneira quando o momento exigir, mas simplesmente não
conseguir fazê-lo quando chagar o momento. Por exemplo, costuma-se dizer que a coragem é
uma virtude. Porém, não basta qualificá-la como mérito, considerá-la um valor, para nos
dotarmos dessa virtude.
Ainda que a coragem seja desejável, e a desejemos genuinamente, é bem possível que não
consigamos ser corajosos quando as circunstâncias assim o exigirem.
Como adquirimos as virtudes? Adquirimos as virtudes por HÁBITO.
O hábito é mais do que o gesto que se repete automaticamente. No caso da virtude, trata-se de
um longo esforço acompanhado de intensa concentração que, juntos, nos tornam aptos a fazer
coisas que consideramos desejáveis e moralmente corretas ou nobres.
O CARÁTER
Na verdade, NÃO EXISTE UMA VIRTUDE, MAS VÁRIAS. Uma pessoa encerra em si mesma
uma mistura de disposições, que lidam com as diferentes partes da engrenagem da ação.
Algumas dessas disposições podem ser, em diferentes graus, virtudes ou vícios
Podemos ser corajosos, mas imprudentes; medrosos, porém honestos, e assim por diante. É
pouco provável que uma pessoa consiga reunir todas as boas disposições imagináveis, e
menos ainda no seu grau mais elevado. Ninguém é perfeito.
A complexa mistura de disposições numa personalidade vai constituir o que chamamos de
CARÁTER.
Quando julgamos o caráter de alguém, não avaliamos uma página ou um breve capítulo de sua
vida. Fazemos um balanço do conjunto da obra até ali. Não dizemos que tal sujeito “é honesto”
apenas porque foi honesto em determinada ocasião. Precisamos saber se aquele gesto
representa um aspecto mais ou menos estável de sua personalidade. Se sua vida pregressa
confirma essa impressão, então dizemos que a honestidade é um traço de seu caráter.
Somos propensos a dar mais peso moral a um caráter virtuoso – talvez por causa de seus
efeitos duradouros para o convívio – do que a um gesto virtuoso ocasional.
O PAPEL DA EDUCAÇÃO
Não nascemos prontos para a vida: os grupos a que pertencemos – por exemplo, a família, com nossos
pais, e a comunidade política, com suas autoridades – encarregam- se de completar aquilo que a
natureza deixou em aberto.
Antes mesmo de chegar à idade adulta, adquirimos certos hábitos, alguns dos quais difíceis de serem
alterados depois.
Assim, parte não desprezível de nossa capacidade para deliberar e escolher em sentido pleno, e que
sempre acompanha as virtudes, é fruto de uma herança que recebemos pela educação. Com ela se
transmite conhecimentos, mas também se forma o caráter. Isso dá à Educação uma incontornável
dimensão ética.
E se cremos, como hoje, que a escola é uma das instituições mais importantes da sociedade e que a
educação é um dever do Estado, imediatamente essa dimensão transforma-se numa questão política da
mais alta relevância.
1.5. AUTONOMIA E RESPONSABILIDADE
AUTONOMIA
Autonomia é a condição que nos torna autores da ação, ou seja, livres para governar a nós
mesmos e para fixar nossas próprias regras de vida.
Tão logo nos reconhecemos como autores, passamos a ver nossos atos fora de uma cadeia
contínua de causas e efeitos que, de outro modo, seriam simples elos dessa cadeia, apagando
a nossa autoria.
Ser autor de algo é ser capaz de iniciá-lo de forma independente e livre, isto é, de acordo com
a própria vontade, e não apenas por causa de força alheia, ainda que essa força possa ser
favorável a minha vontade.
KANT E A AUTONOMIA
Há muita discussão filosófica sobre o fundamento da autonomia. Em uma das elaborações mais
influentes, Immanuel Kant, o famoso filósofo alemão, pensou poder justificá-la pela noção de uma
vontade inteiramente livre não só de causas externas, mas até mesmo dos apetites e emoções.
Seria a autonomia então uma vontade totalmente espontânea? Sim, se a entendermos como uma
vontade que não pertence a uma cadeia causal anterior a ela. Mas não, se a entendermos como um
capricho ou uma mera preferência. Para Kant, a vontade genuinamente livre não pode ser um capricho,
mas deve receber a forma de uma lei universal, signo da própria razão.
Outras elaborações da autonomia dão menos peso a essa razão depurada de influências emocionais, e
atenta apenas à universalidade de sua forma, independente do conteúdo que receba. Não precisamos,
porém, concordar inteiramente com a argumentação kantiana para reconhecer a importância da idéia de
autonomia para nossa vida ética.
RESPONSABILIDADE
Se a autonomia significa o início da obra, a responsabilidade significa a assinatura dela tão
logo ganhe o mundo. A responsabilidade é uma conseqüência direta dessa idéia de autoria da
ação.
Se me sinto capaz de iniciar uma ação, independente de outros fatores que venham a
concorrer para a sua realização no mundo, devo ser capaz também de responder por, pelo
menos, parte de suas conseqüências – ou seja, aquelas em que for possível identificar um
vínculo com minha autoria. Não podemos controlar todas as conseqüências de nossos gestos,
mas temos que nos responsabilizar por aquelas decorrentes diretamente de nossa ação.
Isso indica um aspecto importante da responsabilidade que nos remete outra vez à deliberação
e à escolha.
POR QUÊ?
A deliberação discrimina alternativas, ainda que precárias e incertas. Algumas alternativas,
inclusive, podem ser mais prováveis que outras. Mesmo que a dúvida represente possibilidade
de erro, a escolha deve finalizar a deliberação.
De fato, algo poderá dar errado, mesmo que a escolha tenha sido a melhor possível, dadas as
circunstâncias e a urgência do ato. A escolha é, portanto, um salto arriscado.
SER RESPONSÁVEL É ASSUMIR ESSE RISCO E IR EM FRENTE.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1) Sobre a natureza da moralidade de um modo geral, ver de R.M. Hare, Ética – Problemas e
Propostas (São Paulo: Edunesp, 2004). Ver também a coletânea de artigos A Companion to
Ethics, organizada por Peter Singer (Oxford: Blackwell, 1991); o Dicionário de ética e Filosofia
Moral, organizado por Monique Canto- Sperber (São Leopoldo, RS Unisinos, 2003; 2 vols.) e
da mesma autora e de R. Ogien, ver Que devo fazer? (São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2004).
2) Sobre a ética das virtudes, ver a coletânea Virtue Ethics (nova York Oxford Univ Press,
1997), organizada por R. Crisp e M. Slote. Para uma crítica da filosofia moderna, por
supostamente ter colocado em segundo plano a ética das virtudes, ver de A Macintyre. Depois
da Virtude (Bauru, SP: Edusc, 2001).
3) Sobre deliberação e escolha, ver de P. Aubenque, A Prudência em Aristóteles (São Paulo:
Edusp,) especialmente o capítulo III.
4) Sobre a origem e desenvolvimento da idéia de autonomia moral, ver de J.B. Schnnewind, A
Invenção da Autonomia (São Leopoldo, RS: ED. Unisinos, 2001).
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